quarta-feira, 5 de setembro de 2012

DIREITO CIVIL vivo - FAMÍLIA - União poliafetiva



A ORDEM CONSTITUCIONAL VIGENTE E A UNIÃO POLIAFETIVA:
reflexões iniciais

O legislador constituinte fundou a República Federativa do Brasil sobre a base da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), bem como traçou como objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) e a promoção do bem de todos, sem qualquer discriminação (art. 3º, IV). 

Garantir a dignidade humana, construir uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo o bem de todos, sem qualquer discriminação, não constituem, pois, opções pessoais, mas sim mandamentos constitucionais basilares, porquanto sustentam a ordem constitucional e lhe imprimem movimento para a frente. Trata-se de um verdadeiro resumo do espírito da Constituição de 1988, seu cerne jurídico e fundante, com verdadeiro caráter constitucional material.

O jurista que, em pleno ano de 2012, ousar conceber o ordenamento jurídico fechando os olhos para a garantia da dignidade humana, para a liberdade, a justiça e a solidariedade, bem como para a não discriminação, certamente estará fadado à superação, pois a ordem constitucional, ainda que o processo leve tempo, há de, afinal, triunfar e definitivamente se implantar.

É justamente nesse contexto de triunfo e implantação definitiva da ordem constitucional fundada em 1988 que se insere o debate acerca da união poliafetiva e do caso específico da escritura pública lavrada em Tupã, no Estado de São Paulo, que contém a declaração de três pessoas que vivem em tal situação.

Para que seja possível o debate, seria razoável que aqueles que têm evocado a nulidade da escritura e a condenação jurídica da situação apontassem um único – um apenas já seria suficiente – argumento verdadeiramente jurídico – e não de cunho moral ou religioso – que afaste a incidência, ao caso, dos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da não discriminação

Não se quer aqui debater se a lei permite ou não o casamento de três pessoas, embora se sinalize para a distinção entre bigamia e união concomitante entre três parceiros, e para a necessidade de se submeter os atos normativos legais à análise de constitucionalidade.

O que se quer, tão somente, é compreender como seria possível reprovar a conduta de três pessoas que declararam a uma tabeliã sua opção por viver juntos em comunhão de afeto, ou como seria possível taxar de nula a escritura lavrada pela tabeliã. 

Como, na ordem constitucional implantada na República em que vivemos, pode-se reprovar a união poliafetiva? Fazê-lo, em tese, importa em violação da dignidade das pessoas que, livremente, optaram por assim viver, e que não devem ser discriminadas. Não se pode esquecer que somente são reprováveis juridicamente as condutas violadoras da ordem constitucional, o que não é o caso.

Como, na teoria dos atos jurídicos, reputar nulo um ato que não se enquadra em nenhuma das hipóteses de nulidade previstas pelo art. 166 do Código Civil, nem em qualquer outra? Qual a norma jurídica que prevê a nulidade da espécie?

O que se pretende, com essa curta reflexão, é chamar a atenção de toda a comunidade para a necessidade de se debater o assunto com argumentos jurídicos, deixando à margem os argumentos de qualquer outra natureza, como os provenientes das ordens normativas religiosas e morais de cada um, que cada um escolhe e mantém para si no exercício do seu livre arbítrio. 

Afinal, o que está em jogo é a dignidade de pessoas reais, sua liberdade e seu bem estar. E estão em jogo, paralelamente, um dos fundamentos da República e dois de seus objetivos. Não convém, pois, proceder com precipitação, apressando-se em reprovações e julgamentos de valor simplesmente por se estar diante do diferente.