A ORDEM
CONSTITUCIONAL VIGENTE E A UNIÃO POLIAFETIVA:
reflexões
iniciais
O legislador constituinte fundou
a República Federativa do Brasil sobre a base da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), bem como traçou como
objetivos da República a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) e a promoção do bem de todos, sem qualquer
discriminação (art. 3º, IV).
Garantir a dignidade humana,
construir uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo o bem de todos,
sem qualquer discriminação, não constituem, pois, opções pessoais, mas sim mandamentos constitucionais basilares,
porquanto sustentam a ordem constitucional e lhe imprimem movimento para a
frente. Trata-se de um verdadeiro resumo do espírito da Constituição de 1988, seu
cerne jurídico e fundante, com verdadeiro caráter constitucional material.
O jurista que, em pleno ano de
2012, ousar conceber o ordenamento jurídico fechando os olhos para a garantia
da dignidade humana, para a liberdade, a justiça e a solidariedade, bem como
para a não discriminação, certamente estará fadado à superação, pois a ordem
constitucional, ainda que o processo leve tempo, há de, afinal, triunfar e definitivamente se implantar.
É justamente nesse contexto de
triunfo e implantação definitiva da ordem constitucional fundada em 1988 que se
insere o debate acerca da união poliafetiva e do caso específico da escritura
pública lavrada em Tupã, no Estado de São Paulo, que contém a declaração de
três pessoas que vivem em tal situação.
Para que seja possível o debate, seria
razoável que aqueles que têm evocado a nulidade da escritura e a condenação
jurídica da situação apontassem um único – um apenas já seria suficiente –
argumento verdadeiramente jurídico – e não de cunho moral ou religioso – que
afaste a incidência, ao caso, dos princípios
da dignidade da pessoa humana, da
liberdade e da não discriminação.
Não se quer aqui debater se a lei
permite ou não o casamento de três pessoas, embora se sinalize para a distinção
entre bigamia e união concomitante entre três parceiros, e para a necessidade
de se submeter os atos normativos legais à análise de constitucionalidade.
O que se quer, tão somente, é
compreender como seria possível reprovar a conduta de três pessoas que
declararam a uma tabeliã sua opção por viver juntos em comunhão de afeto, ou
como seria possível taxar de nula a escritura lavrada pela tabeliã.
Como, na ordem constitucional
implantada na República em que vivemos, pode-se reprovar a união poliafetiva?
Fazê-lo, em tese, importa em violação da dignidade das pessoas que, livremente,
optaram por assim viver, e que não devem ser discriminadas. Não se pode
esquecer que somente são reprováveis juridicamente as condutas violadoras da
ordem constitucional, o que não é o caso.
Como, na teoria dos atos
jurídicos, reputar nulo um ato que não se enquadra em nenhuma das hipóteses de
nulidade previstas pelo art. 166 do Código Civil, nem em qualquer outra? Qual a
norma jurídica que prevê a nulidade da espécie?
O que se pretende, com essa curta
reflexão, é chamar a atenção de toda a comunidade para a necessidade de se
debater o assunto com argumentos jurídicos, deixando à margem os argumentos de
qualquer outra natureza, como os provenientes das ordens normativas religiosas
e morais de cada um, que cada um escolhe e
mantém para si no exercício do seu livre arbítrio.
Afinal, o que está em jogo é a
dignidade de pessoas reais, sua liberdade e seu bem estar. E estão em jogo,
paralelamente, um dos fundamentos da República e dois de seus objetivos. Não
convém, pois, proceder com precipitação, apressando-se em reprovações e
julgamentos de valor simplesmente por se estar diante do diferente.